Monday, October 01, 2007

"A escola não é a família"

Quem o diz é João Grancho, presidente da Associação Nacional de Professores, em entrevista à revista Xis, por Margarida Lancastre



João Grancho clama pelo estabelecimento de um "pacto educativo" que estabilize de uma vez por todas o ensino em Portugal. Aponta o dedo às dezenas de Governos, de todas as ideologias, e não exclui nenhuma facção da sociedade na sua quota-parte de responsabilidade para o estado de violência e impunidade que se vive na escola.

Aquilo que sobressai da denominação da vossa associação é ser uma "associação" e não um sindicato.
A Associação Nacional de Professores não é uma organização sindical. Já existem sindicatos que cheguem. Não é esse o nosso objecto.

Qual é o objecto e quais os objectivos da Associação Nacional de Professores?
Contamos, de momento, com cerca de 12 mil professores. Ocupa-mo-nos do ensino em todas as suas vertentes, desde o ensino básico até ao nível superior. Desejamos definir, de forma clara e objectiva, quais as componentes caracterizadoras e indispensáveis ao ensino e aos professores de cada um destes níveis. Acima de tudo, centramo-nos nas questões ligadas com a profissão e o seu exercício, na garantia de qualidade, com a ética e com a deontologia ligadas ao exercício da profissão.

Pretendem criar um consenso no seio de tamanhas divergências e alterações permanentes?
É urgente, indispensável, que se constitua uma base comum consensual para o ensino, que se mantenha inabalável contra todas as políticas e contrapolíticas que se sucedem, até à exaustão, no nosso país. Há 20 anos que defendemos a existência de um quadro ético e deontológico para o exercício da profissão de professor, que clamamos por estas medidas como condições indispensáveis à melhoria da qualidade educativa no país.

É nesse sentido que desejam criar uma Ordem dos Professores e mesmo Colégios de Especialidades dentro da Ordem?
É indispensável que exista um organismo, como uma Ordem, que proceda, não ao corporativismo e à defesa dos próprios interesses dos seus associados, mas a uma auto-regulação exigente da profissão de professor, no interesse de toda a sociedade, para que o exercício da profissão traduza um serviço de qualidade com garantias asseguradas e verificadas.

Quer isso dizer que considera necessário controlar e avalizar quem exerce o ensino nas escolas do país?
O ensino tem sido invadido por aquilo a que chamo de "indiferenciados", isto é, indivíduos que não possuem nem a vocação nem a preparação adequada para a docência. É urgente que exista um órgão - a Ordem, neste caso - que fiscalize e leve a cabo o reconhecimento da capacidade e da competência para ensinar de cada potencial professor. Apenas a certificação e a acreditação do professor para o ensino pode garantir a sua qualidade.

Concorda que existe um desfazamento entre a formação no ensino superior e a realidade posterior em que um futuro professor se insere?
O desligamento entre o ensino superior e a realidade é total. Era necessário criar-se uma concertação entre o ensino superior e as escolas, de forma a que as realidades se tocassem mais estreitamente. Os nossos cursos superiores possuem uma dimensão teórica muito forte e uma dimensão prática ínfima. A aproximação à docência carece de um período de indução da função docente. Defendemos que o docente seja primeiro inserido no meio escolar num regime de tutorado e que esse período seja sujeito a avaliação. Só depois deste período se passaria ao recrutamento escolar, após o qual ainda existiria um ano probatório para que, então sim, se procedesse à aceitação desse professor.

Há quanto tempo se fala neste tipo de necessidade?
Falamos nestas necessidades há 25 anos, em teoria, até à exaustão. Mas em termos reais, na prática, a evolução foi nula. Existiram fundos comunitários para apoiar toda esta remodelação premente na educação. E o retorno foi nulo.

Continua a persistir a ausência de uma visão integrada do sistema educativo?
Quando olhamos para trás e verificamos que, em 30 anos, tivemos 24 ministros da Educação, o panorama é avassalador. Persiste a ausência de uma visão integrada, persiste a falta de um esqueleto básico consensual, persistimos em não ser capazes, sequer, de estabelecer um quadro de referências comum, a partir do qual se possa, finalmente, começar a trabalhar efectivamente para algo que seja um bem comum.

O psiquiatra francês Patrick Delaroche vem defendendo há anos que a educação não pode ser uma questão de esquerda ou de direita, que tem de ser estabelecida sobre um conjunto de regras básicas, sobejamente reconhecidas, para educar qualquer ser humano. Concorda com a necessidade de se efectuar um "pacto de regime" no que se refere à educação?
É crucial que se efectue um "pacto educativo". É urgente que sejamos capazes de chegar a um compromisso educativo entre todas as forças políticas. A posteriori, aceitar-se-iam alterações pontuais, mas estas já elaboradas sobre um esqueleto básico consensual, mais ou menos imutável.

A escola parece servir de bode expiatório para tudo porque, por outro lado, parece exigir-se dela tudo...
À escola, na actualidade, exige-se tudo. Tudo aquilo que não se exige aos Governos, nem aos pais, espera-se que a escola dê. Mas a escola não pode colmatar todas as falhas da sociedade. A sua função é, acima de tudo, ensinar. A escola não é a família.

Mas é óbvio que os alunos transportam para a escola todos os seus problemas económicos, sociais e familiares que aí transparecem...
Por isso é que as escolas, para além dos professores, têm de estar apetrechadas com técnicos especializados, das áreas da Psicologia, Sociologia ou Assistência Social, para que possam lidar com as situações carenciadas a esses níveis. O professor não pode, nem deve, ter capacidade para lidar com tudo. A função essencial da escola é ensinar e não se pode esperar que sejam os professores, em prolongamento de horários, a colmatar falhas e a resolver problemas graves para os quais têm de existir especialistas.

Muitos pais depositam os filhos na escola e esperam que esta lhos devolva educados.
Os pais demitiram-se de qualquer tipo de responsabilidade perante os filhos, não se dão ao trabalho de os educar. Mas não podem ser os professores a preencher todas as lacunas sociais, familiares e psicológicas dos alunos.

Aquilo que sucede entre nós não é um caso isolado, alunos insolentes e violentos surgem um pouco por todo o lado - de França aos EUA...
Os EUA acordaram para o problema da pior forma, com os tiroteios de adolescentes. Neste momento começaram a criar comunidades de pais com a presença de médicos, psicólogos e assistentes sociais, para levar a cabo um trabalho exaustivo, de equipa, para trabalhar sobre as falhas graves a todos os níveis que estas famílias apresentam. Isto não poderia ser levado a cabo apenas pêlos professores. É necessário existirem esforços concertados e sequenciais no acompanhamento destes casos difíceis...

O que se torna difícil no ensino português, pois tanto os alunos como os professores mudam de escola de ano para ano, de ciclo para ciclo. A irregularidade e dispersão é total...
Essa é outra das pedras de toque da Associação. A promoção da fixação dos alunos e dos professores. Combater a mobilidade. Uma "regionalização da educação" possibilita o estabelecimento de uma cultura de proximidade entre a escola, o aluno e o professor que permite aproximar a solução dos problemas aos mesmos. E não é com a fixação de três anos de um professor a um local. Sei de uma criança que apresentava graves problemas ao nível escolar que apenas foram detectados muito tardiamente pêlos quatro únicos professores, de entre 14 existentes, que, de facto, conheciam a criança e a sua família. Apenas com uma cultura de proximidade podemos aproximar as soluções e os problemas.

Considera essencial a autonomização das escolas?
É indispensável que a escola possa desenvolver uma maior autonomia. Mas ela tarda em sair do papel. Existem estruturas regionais que mais não são que delegações do Ministério da Educação (ME) no plano administrativo. A Administração alimenta uma profunda desconfiança perante a autonomia pedagógica das escolas. Mas é essencial que exista autonomia a esses dois níveis.

Como, aliás, existe nos estabelecimentos de ensino privado: um conselho pedagógico e uma administração financeira, dirigindo cada uma a sua "área", não impedindo que dialoguem entre si.
Esse seria o modelo ideal. Uma gestão administrativa e uma gestão pedagógica, em articulação com os conselhos de docentes e com os conselhos de turma.

Como é que se chegou a este estado de degradação da imagem e da dignidade da escola e do professor?
A escola, neste momento, funciona como bode expiatório para tudo e para todos. Mas o Governo e a sociedade têm de parar e debater séria e decididamente o que querem que a escola seja e o que querem que o professor seja. Considero que os Governos têm desejado conquistar a sociedade através da diminuição da dignidade do professor. Aquilo que é deixado perpassar para a sociedade é que o professor é bem pago, não cumpre e é responsável pelo insucesso geral da sociedade. Tem sido levado a cabo um processo de destruição da auto-estima e de desacreditação do professor que o leva a um progressivo alheamento da sua profissão.

Daí a necessidade de recorrer à criação de uma Linha telefónica SOS Professor?
A necessidade de criação de uma linha telefónica de apoio ao professor passa por tudo isso. Passa pelo registo de 1200 agressões verbais, psicológicas, e mesmo físicas, das quais os professores foram vítimas, pêlos seus próprios alunos, nas suas próprias salas de aula, apenas em 2004/2005. Passa pela incapacidade de punir comportamentos que fogem, na totalidade, a qualquer parâmetro ético, moral ou cívico, de forma célere e justa. Passa pela impunidade destes comportamentos. Passa, como já disse, pela desacreditação da figura do professor. Pelo stress, pelo mal-estar...

As situações que relata são inacreditáveis...
Chegámos ao ponto de termos escutado, por parte do ME, o seguinte: "Os professores têm de estar preparados para serem agredidos em escolas com ambientes de violência". Ou seja, passe a ironia, parece que, na actualidade, as escolas se gradam pelo tipo de violência para a qual o professor tem de estar preparado: "nível A: possíveis facadas, agressão física; nível B: possível agressão verbal, desrespeito, desobediência"...

Mas também tem referido uma situação inesperada que é o temor que existe entre pares de pedir auxílio e falar abertamente das dificuldades de cada um...
Infelizmente, no ensino, falha a partilha e troca de informação. Entre pares existe o temor de se levantar uma dúvida ou um problema, pelo receio de ser apontado ou desconsiderado. Mas assim não vamos a lado nenhum, há que discutir e partilhar. Há que existir a possibilidade permanente de um professor, ao sentir uma insuficiência de conhecimento em determinada área, poder recorrer às Escolas Superiores de Educação, que não deveriam fechar. Há que clamar por uma qualidade cada vez mais exigente.

Daí que se insurja contra aquela que considera vir a ser uma diminuição da exigência quanto à preparação dos professores do ensino básico...
É um erro crasso que se aposte mais nos professores do ensino superior. Quanto a mim, esta atitude pode apenas advir de um subterfúgio para a não desertificação das universidades. Já sabemos que o ensino básico é a pedra basilar da educação. A preparação destes professores deve ser tão profunda quanto possível, de modo a preparar e antecipar da melhor forma a aprendizagem do aluno.

Como explica este paradoxo de, perante um mundo laborai cada vez mais exigente e competitivo, a exigência na escola ser cada vez mais diminuta?
A escola tem sido alvo das mais variadas correntes pedagógicas. Das mais directivas [o professor como veículo de passagem de informação] às mais construtivistas [a teoria de que o aluno aprende a aprender sozinho]. Mas penso que tem, acima de tudo, sido alvo, ou reflexo, de um aligeiramento social. Uma sociedade permissiva e banalizada, banaliza, cada vez mais, a escola. Uma banalização e permissividade que, em suma, desembocam na ausência de liberdade e de democracia.

Mais uma vez sublinha que nada disto tem relação com comportamentos ideológicos...
Isto tem que ver com aquilo que é o civismo básico da convivência em sociedade. O Governo tem de decidir o que quer para a sociedade, o que quer para a escola. Com atitudes como as passagens administrativas de ano, com atitudes como a ausência de aferição de conhecimentos, não vai a lado nenhum.

Haverá responsabilidades a apontar à Comunicação Social?
A Comunicação Social deveria procurar saber o que é verdadeiramente a escola e o que lá se passa...

Existe a tentação de atacar sistematicamente a autoridade?
Autoridade não é autoritarismo, sublinhe-se. Tem de haver normas e valores, executados e controlados para viver em democracia, de forma cívica. A autoridade é inerente ao exercício da profissão e advém da competência. Os alunos têm de saber que estão numa organização com normas, pelas quais todos nos temos de reger, para que o processo de ensino e de aprendizagem decorra em paz e com sucesso.

Estamos a perder a batalha social?
Quando aquilo que qualquer jovem observa no topo da hierarquia social - seja no âmbito político, empresarial ou administrativo - é a violação da honestidade e da ética, para não falar na desobediência à própria lei, e a impunidade e prestígio com que essas pessoas se passeiam na sociedade, interroga-se: "Para quê o esforço?" Como pode a escola ensinar ou transmitir aquilo que a sociedade não representa? x

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